A caminhada espiritual do discípulo é narrada pelo Zen através de dez ilustrações criadas por Kakuan no séc XII. Estas narram uma alegoria intitulada Apascentando o touro. Os dez quadros representam os degraus progressivos de percepção que levam cada vez mais perto do instante absoluto da iluminação. Mestre Kakuan escreveu os comentários em prosa e verso que vemos aqui.
EM BUSCA DO TOURO
Na pastagem deste mundo, empurro infindavelmente para
o lado o capim alto, em busca do touro.
Seguindo os rios sem nome, perdido nos caminhos
interprenetrantes de montes remotos.
Minha resistência esmorecendo e minha vitalidade
esgotada, não consigo encontrar o touro.
Ouço apenas os gafanhotos cricrilando pela floresta à noite.
Comentário: O touro jamais se perdeu. Que necessidade há de sair à procura? Só por causa da separação da minha verdadeira natureza eu não consigo encontrá-lo. Na confusão dos sentidos, perco até suas pegadas. Longe de casa, vejo muitas encruzilhadas, mas qual é o caminho certo eu não sei. Cobiça e medo, o bom e o mau, enredam-me.
DESCOBRINDO AS PEGADAS
Acompanhando a margem encontro pegadas embaixo das árvores!
Até embaixo do capim cheiroso vejo as pegadas dele.
Nas vastidões de montes distantes elas são encontradas.
Esses traços não podem ser mais escondidos que o nariz de alguém que olha para o céu.
Até embaixo do capim cheiroso vejo as pegadas dele.
Nas vastidões de montes distantes elas são encontradas.
Esses traços não podem ser mais escondidos que o nariz de alguém que olha para o céu.
Comentário: Compreendendo o ensinamento, enxergo as pegadas do touro. Compreendo então que, assim como muitos utensílios são feitos de um metal, miríades de entidades também são feitas do tecido do Eu. A não ser que eu discrimine, como vou perceber o que é verdadeiro ou não é? Apesar de ainda não ter atravessado a porta, distingui o caminho.
PERCEBENDO O TOURO
Ouço o canto de um rouxinol.
O sol está quente, o vento é suave, os salgueiros verdes
acompanham a margem;
aqui nenhum touro pode se esconder!
Que artista consegue desenhar aquela cabeça imponente,
aqueles chifres majestosos?
Comentário: Quando ouvimos uma voz, podemos perceber de onde vem. Logo que os seis sentidos se fundem, atravessamos a porta. Entretanto, vemos imediatamente a cabeça de um touro! Essa identidade é como o sal na água, como a cor no corante. Nem a mais ínfima coisa está separada do Eu.
CAPTURANDO O TOURO
Agarro-o com um esforço terrível.
Suas enormes vontade e força são inesgotáveis.
Ele arremete para o planalto elevado, muito acima das nuvens
Ou fica parado numa ravina impenetrável.
Suas enormes vontade e força são inesgotáveis.
Ele arremete para o planalto elevado, muito acima das nuvens
Ou fica parado numa ravina impenetrável.
Comentário: Ele se demorou na floresta durante muito tempo, mas hoje eu o apanhei! A fascinação pelo cenário interfere em seu rumo. Ansiando por um capim mais doce, ele se afasta, errante. Ainda tem a mente obstinada e desenfreada. Querendo subjugá-lo, terei de levantar meu relho.
DOMANDO O TOURO
O relho e a corda são necessários,
Senão ele poderia se desgarrar para alguma estrada poeirenta.
bem treinado, torna-se manso naturalmente.
Depois, libertado, obedece ao mestre.
Senão ele poderia se desgarrar para alguma estrada poeirenta.
bem treinado, torna-se manso naturalmente.
Depois, libertado, obedece ao mestre.
Comentário: Quando um pensamento surge, logo vem outro. Quando o primeiro pensamento nasce da iluminação, todos os pensamentos subsequentes são verdadeiros. Pela ilusão, fazemos tudo ser inverídico. A ilusão não é provocada pela objetividade, é o resultado da subjetividade. Mantenha firme a argola de nariz do touro e não permita a mínima dúvida.
MONTADO O TOURO DE VOLTA PARA CASA
Montando o touro, volto para casa devagar:
A voz de minha flauta entoa pela noitinha.
Acompanhando a harmonia pulsante com batidas de mão,
dirijo o ritmo eterno.
Qualquer pessoa que ouve esta melodia se junta a mim.
Comentário: esta luta acabou; ganho e perda estão assimilados. Canto a canção do lenhador da aldeia e toco as melodias das crianças. Escarranchado no touro, observo as nuvens lá no alto. Adiante eu vou, não importa quem possa querer me chamar de volta.
O TOURO TRANSCENDIDO
Escarranchando no touro, chego em casa.
Estou sereno. O touro também pode descansar.
A aurora chegou. Em repouso jubiloso,
Dentro de minha morada coberta de sapé abandonei o relho e a corda.
Comentário: Tudo é uma lei, não duas. Fazemos do touro apenas um objeto temporário. É como a relação entre o coelho e a armadilha, entre o peixe e a rede. É como o ouro e a escória, ou como a lua surgindo de uma nuvem. Uma trilha de luz clara segue adiante pelo tempo infinito.
O TOURO E O EU TRANSCENDIDOS
Relho, corda, pessoa e touro - tudo se funde em Coisa Nenhuma.
Este céu é tão vasto que nenhuma mensagem consegue manchá-lo.
Como pode um floco de neve existir num incêndio devastador?
Aqui estão as pegadas dos patriarcas.
Comentário: A mediocridade se foi. A mente está livre das limitações. Não estou em busca de nenhum estado de iluminação. Nem permaneço onde não há nenhuma iluminação. Como não me demoro em nenhum desses estados, nenhum olho consegue me ver. Se centenas de pássaros forrassem meu caminho de flores, seria um louvor sem significado.
CHEGANDO À ORIGEM
Foram dados passos demais para voltar à raiz e à origem.
Melhor seria ter sido cego e mudo desde o início!
habitar nossa morada verdadeira, sem preocupação com o que há lá fora:
O rio flui tranquilo e as flores são vermelhas.
Melhor seria ter sido cego e mudo desde o início!
habitar nossa morada verdadeira, sem preocupação com o que há lá fora:
O rio flui tranquilo e as flores são vermelhas.
Comentário: Desde o início a verdade é clara. Em atitude silenciosa, observo as formas de integração e de desintegração. Quem não está ligado à forma não precisa ser reformado. A água é verde esmeralda, a montanha é azul anil e eu vejo o que está criando e o que está destruindo.
NO MUNDO
Descalço e de peito nu, misturo-me com as pessoas do mundo.
minhas roupas estão esfarrapadas e cobertas de pó e estou mais jubiloso do que nunca.
Não uso magia para estender minha vida;
Agora as árvores mortas revivem diante de mim.
Comentário: Do lado de dentro de minha porta, mil sábios não me conhecem. A beleza do meu jardim é invisível. Por que se deveria sair em busca das pegadas dos patriarcas? Vou ao mercado com minha garrafa de vinho e volto para casa com meu cajado. Visito a loja de vinhos e o mercado e todos aqueles para quem dirijo o olhar alcançam a iluminação.
Fontes:
Quadros: Obtido em: http://www.samamultimidia.com.br/port/catalogo/art03-zen.html.
Texto: O pequeno Buda. Samuel Bercholz e Sherab Chödzin Kohn.
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