“A FILOSOFIA VEDANTA”
Swami Vivekananda
Swami Vivekananda
(Conferência ante a Sociedade Filosófica de Graduados da
Universidade de Harvard, em 25 de março de 1896)
A
filosofia vedanta, como atualmente se costuma chamá-la, compreende, na
realidade, todas as diversas seitas existentes hoje em dia na Índia. Assim,
pois, tem havido varias interpretações, às quais, no meu modo de ver, têm sido
progressivas, começando pela dvaita ou dualista e terminando pela advaita ou
monista. A palavra “vedanta” significa, literalmente, a finalidade dos Vedas,
que são as escrituras dos hindus 1. No Ocidente, às
vezes, por Vedas se quer dar a entender unicamente os hinos e os rituais, mas
na atualidade estas partes já não se usam e correntemente na Índia, ao dizer
Vedas, se subtende a vedanta. Todos nossos comentadores quando querem citar
alguma passagem das escrituras, em geral, citam a vedanta, a qual tem para eles
outro nome técnico: “srutis” 2. Agora, todos os
livros conhecidos sob o nome de vedanta, não foram escritos inteiramente depois
das partes ritualistas dos Vedas. Por exemplo, um deles, o Isha Upanishad,
constitui o capitulo quadragésimo do Vada Yajur, uma das partes mais antigas
dos Vedas. Outros Upanishads 3, formam as partes dos
brahmanas ou escritos rituaistas e os demais são independentes, pois não estão
compreendidos em nenhum dos brahmanas nem em outras partes dos Vedas; mas não
há razão para supor que foram completamente independentes de outras partes,
porque como bem sabemos, muitas destas se perderam totalmente e muitos dos
brahmanas desapareceram. Portanto, é bem possível que os Upanishads
independentes pertenceram a algum dos brahmanas que, no transcorrer do tempo,
ficaram fora de uso, enquanto que se conservaram os Upanishads. Estes se
chamam, também, livros da selva ou aranyakas.
1. Os Vedas se dividem em duas
partes, a saber: karma-kanda e jnana-kanda; ou seja, a parte prática e a de
conhecimento. Pertenceu a karma-kanda os famosos hinos e os rituais ou
brahmanas. Os livros que tratam de questões espirituais, excluindo as cerimônias,
se chamam Upanisjads e pertencem a jnana-kanda, aparte do conhecimento. Não é
que todos os Upanishads foram compostos como parte separada dos Vedas, senão
que alguns estão misturados com os rituais e ao menos um está no “samhita” ou
parte dos hinos. Às vezes se aplica o termo Upanishads a livros não incluídos
entre os Vedas; por exemplo, o Gita; mas em regra geral, se aplica aos tratados
filosóficos disseminados entre os Vedas. Estes tratados têm sido colecionados e
é chamado vedanta.
2. O termo sruti significa “o
que se vê” e embora inclua a totalidade da literatura védica, é aplicado pelos
comentadores principalmente aos Upanishads.
3. Se diz que os Upanishads
são cento e oito. Não se conhecem, com certeza, suas datas; a única certeza é
que são mais antigos que o movimento budista. Embora alguns Upanishads menores
contenham alusões que indicam sua data posterior, ele não prova que o tratado
seja de data mais recente, pois em muitíssimos casos ocorre, na literatura
sânscrita, que a substância de um livro, embora de data muito antiga, receba um
revestimento, por assim dizer, de sucessos posteriores, em mãos de sectários,
para exaltar a sua seita particular.
Por
conseguinte, a vedanta constitui praticamente as escrituras dos hindus e todos
os sistemas ortodoxos de filosofia hão de aceita-la como fundamento. Até os
budistas e os jainos, quando convém a seu propósito, citam como autoridades
passagens da vedanta. Na Índia, todas as escolas de filosofia, embora pretendam
estar fundadas nos Vedas, têm dado diferentes nomes a seus sistemas. A última,
o sistema de Vyasa, se baseou nas doutrinas dos Vedas mais que nos sistemas
anteriores e intentou harmonizar as filosofias precedentes, tais como a sankhya
e a nyaya,com as doutrinas da vedanta. De maneira que chamam-na especialmente
filosofia vedanta; e os sutras ou aforismos de Vyasa, representam, na Índia
moderna, a base da filosofia vedanta.
Por
outro lado, os aforismos de Vyasa têm sido diversamente explicados por
diferentes comentadores. Em geral, há na Índia três tipos de comentadores 4,
e de suas interpretações têm surgido três sistemas de filosofia e três seitas,
uma é dualista ou dvaita; a segunda é a parcialmente monista ou
vishishtadvaita, e a terceira, a monista, ou advaita. Destas, a dualista e a
parcialmente monista, são as preferidas. Em troca, a monista absoluta tem
relativamente poucos adeptos.
4. Os comentários pertencem a
várias classes, tais como o Bhashya, o Tika, o Tippani, o Churni, etc.; dos
quais todos, exceto o Bhashya, são explicações do texto ou de palavras difíceis
nele mesmo. O Bhashya não constitui propriamente um comentário, senão a
elucidação de um sistema de filosofia extraído dos textos, cujo objetivo não
consiste em explicar as palavras, senão de extrair uma filosofia. Assim, o escritor
de um Bhashya expande seu próprio sistema, tomando os textos como autoridade
para ele mesmo.
Muitos
comentários foram feitos sobre a vedanta e suas doutrinas acham sua expressão
final nos aforismos filosóficos de Vyasa. Este tratado, chamado “Uttara
Mimansa”, constitui a autoridade normal do vedantismo, mais até, a exposição
mais autorizada das escrituras hindus. As seitas mais antagônicas se viram
obrigadas, por assim dizer, a tomar os textos de Vyasa e harmoniza-los com sua
própria filosofia. Até em tempos muito antigos, os comentadores da filosofia
vedanta, constituíram três celebradas seitas hindus de “dualistas”,
“parcialmente monistas” e “monistas”. Talvez os antigos comentários se
perderam, mas em tempos modernos, têm sido restabelecidas por comentadores
pós-budistas como Shankara, Ramanuja e Madhava. Shankara restabeleceu a forma
monista; Ramanuja, a forma parcialmente monista do antigo comentador Bodhayana,
e Madhava a forma dualista. Na Índia, as seitas diferem principalmente em sua
filosofia; a diferença entre os rituais é ligeira, já que têm todas a mesma
base filosófica e uma mesma religião.
Tratarei
de explicar-lhes as idéias sustentadas por estas três seitas, porém, antes de
prosseguir, quero fazer presente que estes diferentes sistemas da vedanta têm
uma psicologia comum, a psicologia do sistema sankhya, muito parecida à dos
sistemas nyasa e vaisheshika, salvo pequenos detalhes.
Todo os
vedantistas coincidem em três pontos: crêem em Deus, nos Vedas como revelados e
nos ciclos. Já consideramos os Vedas. O conceito dos ciclos é o seguinte: A
matéria do universo inteiro é resultado de uma matéria principal chamada akasha
e toda força, seja de gravitação, de atração ou de repulsão ou de vida, é o
resultado de uma força principal chamada prana. Prana atuando sobre akasha,
cria ou projeta o universo 5. No princípio de um
ciclo, akasha está imóvel, imanisfestado. Logo prana começa a atuar, criando de
akasha formas mais e mais densas, tais como as plantas, animais, homens,
estrelas, etc. Depois de um incalculável período de tempo, cessa esta evolução
e se inicia a involução, tornando tudo, através de formas cada vez mais finas e
sutis, ao akasha e prana originais, ao que segue um novo ciclo. No entanto
existe algo mais que akasha e prana; pois ambos podem resolver-se em um
terceiro chamado “mahat”, ou mente cósmica. Esta não cria a akasha nem a prana,
senão que se transforma neles.
5. A palavra “criação”, em
espanhol, significa exatamente, em sânscrito, “projeção”, pois não há seita
alguma na Índia que dê à criação, o mesmo sentido que no Ocidente, ou seja,
algo que procede do nada. O que entendemos por criação, é a projeção de algo
que já existia.
Trataremos
agora dos conceitos de mente, alma e Deus. Segundo a psicologia sankhya,
universalmente aceita, em percepção (por exemplo, no caso da visão), existem
ante todos os instrumentos da visão, ou seja, os olhos. Por detrás dos
instrumentos, os olhos, está o órgão da visão ou “indriya” (o nervo ótico e
seus centros), que não é um instrumento externo, mas sem o qual os olhos não
vêem. Para a percepção se necessita de algo mais. A mente ou “manas”, precisa
agregar-se ao órgão; além disto, a sensação leva ao intelecto ou “buddhi”, o
estado determinativo e reativo da mente. Ao proceder a reação de buddhi, brilha
com ela o mundo externo e o egoísmo. Aqui está, então, à vontade; mas ainda
falta algo. Da mesma maneira que em um quadro, por estar composto de sucessivos
motivos de luz, estes hão de estar unidos em algo fixo para formar um todo,
assim também todas as idéias da mente se hão de reunir e projetar-se sobre algo
fixo, relativamente ao corpo e a mente, ou seja, no que se chama alma, purusha
ou Atman.
Segundo
a filosofia sankhya, o estado reativo da mente, chamado buddhi ou intelecto, é
o resultado, a mudança ou certa manifestação de mahat ou mente cósmica. Mahat
modifica em pensamento vibrante; este, por sua vez, se transforma parcialmente
em órgãos e parcialmente em partículas finas de matéria. Da combinação de tudo
isto, se produz o universo inteiro. A sankhya concebe até depois de mahat, um
estado chamado “avyaktam” ou imanifestado, no qual a manifestação da mente não
está presente, senão que sé existem as causas. É chamado também de “prakriti”;
além deste prakriti e eternamente separado do mesmo, está purusha, a alma de
sankhya, a qual carece de atributos e é onipresente. Purusha não é quem atua, é
o expectador. Para explicar a pusha, se emprega o exemplo do cristal; diz-se
que é como o cristal incolor, por detrás do qual se colocam objetos de
diferentes cores; então aparece como colorido, embora, na realidade, não
esteja.
Os
vedantistas rechaçam as idéias da sankhya sobre a alma e a natureza. Declaram
que existe entre estas um abismo, sobre o qual há uma ponte. Por um lado, o
sistema sankhya chega à natureza e logo, prontamente, saltará para o outro lado
e chegará à alma, que está inteiramente separada da natureza. Como pode estas
diferentes cores, como a sankhya as chama, atuar sobre a alma, a qual, por
natureza, é incolor? Por isso os vedantistas afirmam, desde o princípio, que
esta alma e esta natureza são uma 6. Até os vedantistas
dualistas admitem que Atman ou Deus é não somente a causa eficiente deste
universo, mas também a causa material do mesmo. Porém só o dizem em palavras,
pois na realidade não o entendem assim e tratam de escapar de suas próprias
conclusões dizendo: neste universo há três existências; Deus, alma e natureza.
A natureza e a alma são, por assim dizer, o corpo de Deus e neste sentido se
pode afirmar que Deus e o universo inteiro são um. Mas esta natureza e todas
estas várias almas se mantêm diferentes umas das outras por toda a eternidade.
Se manifestam unicamente no princípio do ciclo; ao terminar este, voltam ao
estado puro e se mantêm no mesmo. Os advaitistas, monistas, rechaçam esta
teoria da alma e como têm como apoio quase toda série dos Upanishads, constroem
sobre eles sua filosofia inteira. Todos os livros contidos nos Upanishads têm
um só objetivo, uma só tarefa, demonstrar o seguinte tema: “Assim como pelo conhecimento
de um torrão de argila conhecemos toda a argila, conhecemos toda a argila do
universo, que quer dizer, conhecendo-o, nos permite conhecer todo o universo?”.
A idéia do advaitista é generalizar o universo inteiro em uma única coisa; essa
coisa que é, na realidade, a totalidade do universo. Afirmam que todo este
universo é um só ser que se manifesta por meio de todas estas múltiplas formas.
Admitem que existe o que a sankhya chama natureza; mas dizem que a natureza é
Deus. Este Ser, “Sat”, é o que se converteu em tudo isto, o universo, o homem,
a alma e tudo o que existe. A mente e mahat não são senão manifestação de Sat.
Mas aqui surge uma dificuldade: tal conceito equivale ao panteísmo. Como pode
ocorrer que Sat, que é imutável, como eles mesmos admitem (pois todo o absoluto
é imutável), se transforme em algo mutável ou perecível?
6. A vedanta e a filosofia
sankhya se opõe uma a outra. O Deus da vedanta se desenvolveu do purusha e da
sankhya. Todos os sistemas tomam a psicologia desta última. Tanto a vedanta
como a sankhya crêem na alma infinita, só que a última crê na existência de
muitas almas. Segundo a sankhya, este universo não requer explicação alguma do
exterior. A vedanta crê que existe a alma única, que aparece como muitas; e nós
construímos sobre a análise da sankhya.
Os
advaitistas têm uma teoria que chamam “vivarta vada” ou manifestação aparente.
Segundo os dualistas e os sankhyas, a totalidade deste universo é a evolução da
natureza primária. Segundo os advaitistas e alguns dualistas, a totalidade
deste universo evolui de Deus; e de acordo com os verdadeiros advaitistas, os
seguidores de Shankaracharya, o universo inteiro é a evolução aparente
de Deus. Deus é a causa material deste universo, não em realidade, mas só de
aparência. A célebre ilustração empregada é a corda e a serpente; a corda
parece uma serpente, mas, na realidade, não é. A corda não se transformou em
serpente. De igual modo, este universo, tal qual existe, é esse Ser. Não muda;
todas as mudanças que vemos são só aparentes e causados por “desha”, “kala” e
“nimita” (espaço, tempo e causa) ou, de acordo com uma generalização mais
elevada, por “nama” e “rupa” (nome e forma). O nome e a forma de uma coisa são
o que a diferencia de outra. Nome e forma são a única causa da diferença; na
realidade, são uma e a mesma coisa.
Por
outro lado os vedantistas dizem: não é que haja algo como fenômeno e algo como
número. A corda se transforma em serpente só aparentemente; uma vez que cessa
essa ilusão, a serpente desaparece. Quando alguém é ignorante, vê o fenômeno e
não vê a Deus. Enquanto vê a Deus, o universo se desvanece inteiramente. A
ignorância ou maia, segundo se a chama, é a causa desse fenômeno em que o
Absoluto, o Imutável, confundem-se com o universo manifestado. Maia não é zero
absoluto, nem tampouco inexistência. Não é inexistência porque isto só pode se
dizer do Absoluto, do Imutável e neste sentido, maia é inexistência. Assim
mesmo, tampouco se pode dizer que seja inexistência, porque, se o fosse, não
poderia produzir o fenômeno. De maneira que não é uma coisa nem outra; na
filosofia vedanta se chama “anirvachaniya”, o inexpressável.
Maia,
portanto, é a causa real deste universo. Maia dá nome e forma a matéria que
ministra Brahman ou Deus e aparece logo que este último se transforma em tudo
isto. Os advaitistas, portanto, não aceitam a alma individual; dizem que as
almas individuais são criadas por maia e que na realidade, não podem existir.
Se a existência é uma só, como pode ser que eu seja um, cada um de vós um e
assim por diante? Todos somos um e a causa do mal é a percepção da dualidade.
Tão logo como começo a me sentir separado deste universo chega, em seguida, o
temor e a dor. “De onde um olha o outro, um vê o outro; isso é pequenez. Onde
um não vê o outro, não olha o outro, isto é maior, isso é Deus; ali está a
felicidade perfeita. Nas coisas pequenas não há felicidade”.
De
maneira que, de acordo com a filosofia advaita, esta diferenciação da matéria,
estes fenômenos, ocultam por um tempo, digamos assim, a verdadeira natureza do
homem; mas este, na realidade, não muda o mínimo. O verme mais vil, ou mesmo o
ser humano mais elevado estão presentes na mesma natureza divina. A forma do
verme é a mais inferior e nela maia encobre mais a divindade; a forma mais
elevada é aquela em que a divindade está menos oculta. Por detrás de todas as
coisas existe a mesma divindade e isto nos dá a base da moralidade. Não
prejudiqueis a outro; ama a todos como a ti mesmo. Disto nasce também o
princípio da moralidade advaita, que tem sido compendiado na expressão: própria
abnegação. O advaita diz: este pequeno eu personalizado é a causa de toda minha
desgraça; este pequeno eu individualizado que me faz diferente dos demais
seres, traz ódio, ciúmes e desgraças, lutas e todos os demais males; quando
abandonarmos tal idéia, toda luta cessará e se desvanecerá todo mal-estar.
Portanto, devemos abandona-la; temos de estar dispostos a dar nossas vidas
pelos seres mais inferiores.
Quando o homem está disposto a dar
sua vida até por um mísero inseto, alcançou a perfeição a qual aspira o
advaita; nesse instante o véu da ignorância cai e sente sua própria natureza.
Até nesta vida sentirá que é uno com o universo. Por um tempo, por assim dizer,
a totalidade deste mundo fenomenal desaparecerá para ele e realizará o que ele
é. Não obstante, enquanto se mantiver o carma desse corpo, terá que viver.
Nesse estado em que o véu se desvaneceu e, contudo, se conserva o corpo por
algum tempo, é o que os vedantistas chamam “jivanmukti”, a liberdade em vida.
Quem se deixa enganar durante algum tempo por uma miragem, se um dia esta se
desvanecer, quando se produzir novamente no dia seguinte ou no futuro, já não
se iludirá mais.
Antes
que a miragem se produza pela primeira vez, o homem não poderá distinguir entre
a realidade e a decepção; mas uma vez desvanecida, enquanto possuir órgãos e
olhos verá a imagem, mas já não será iludido. Terá captado a sutil distinção
entre o mundo atual e a miragem. Assim, enquanto o vedantista compreende sua
própria natureza, o mundo inteiro se desvanece para ele; voltará de novo, mas
há não será o mesmo mundo de sofrimento. A prisão dolorosa terá se transformado
em Sat, Chit, Ananda; ou seja, Existência absoluta, Conhecimento absoluto,
Bem-aventurança Absoluta. Consegui-lo é o que procura a filosofia advaita.
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