DEUS APARECE COMO INFINIDADE ABSOLUTA
Senhor Deus, amparo dos
que te procuram,
vejo-te no jardim do Paraíso e não sei o que vejo,
porque nada
vejo do mundo visível.
E apenas sei que não sei o que vejo e que nunca poderei
saber.
Nem sei como chamar-te, porque não sei o que és.
E, se alguém me disser
que és denominado com este ou aquele nome,
sei que esse nome com o qual és
denominado não é o teu nome.
O termo de qualquer modo de significar dos nomes é
o muro para lá do qual te vejo.
E se alguém exprimir um
conceito com o qual possas ser concebido,
sei que esse conceito não é teu
conceito.
Com efeito, todo o conceito tem o seu termo no muro do Paraíso.
E, se
alguém exprimir alguma comparação
e disser que deves ser concebido de acordo
com ela,
sei, do mesmo modo, não ser ela à tua semelhança.
Assim, se alguém
descrever o que entende de ti
querendo oferecer um modo pelo qual sejas
compreendido,
permanecerá ainda longe de ti.
De tudo isto estás, no entanto,
separado por um muro altíssimo.
E o muro separa de ti todas as coisas que
possam ser ditas ou pensadas,
porque estás desligado de tudo aquilo que possa
cair no conceito de quem quer que seja.
Por isso, enquanto me
elevo o mais alto possível, vejo-te como infinidade,
sendo por isso
inacessível, incompreensível, inominável, imultiplicável e invisível.
Assim, é
necessário que aquele que se aproxima de ti
se eleve acima de todo o termo e
fim, acima de tudo o que é finito.
Mas, como chegará a ti, que és o fim para o
qual tende,
se deve elevar-se para além do fim?
Quem se eleva para além do fim
não tende a entrar no indeterminado e no confuso,
e, assim, no que diz respeito
ao intelecto,
na ignorância e na obscuridade,
que são próprias da confusão
intelectual?
É, pois, necessário que o
intelecto se torne ignorante
e se coloque na sombra, se te quiser ver.
Mas o
que é, Deus meu, o intelecto e a ignorância, senão a douta ignorância?
Por
isso, não pode aproximar-se de ti, ó Deus,
que és a infinidade,
senão aquele
cujo intelecto está na ignorância,
ou seja, aquele que sabe que te ignora.
Como pode o intelecto
captar-te a ti, que és a infinidade?
Sabe-se o intelecto ignorante e sabe que
não pode captar-te,
porque és a infinidade.
Entender a infinidade é, pois,
compreender o incompreensível.
Sabe o intelecto que te ignora, porque sabe que
não podes ser conhecido,
salvo se souber o que não é susceptível de se saber
e
se vir o que não é visível e se tiver acesso ao que não é acessível.
Tu, Deus meu, és a
infinidade absoluta, porque vejo que és o fim infinito.
Mas não posso captar
como é que o fim é fim sem fim.
Tu, Deus, és o fim de ti próprio porque és o
que tens.
Se tens fim és fim.
És por isso, fim infinito, porque és fim de ti
próprio,
porque o teu fim é tua essência
e a essência do fim não termina nem
acaba em algo diferente do fim, mas em si.
Por isso, o fim que é o
fim de si próprio é infinito
e todo o fim que não é fim de si próprio é um fim
finito.
Tu, Senhor, que és o fim que dá o fim a tudo, és,
por essa razão, o fim
para o qual não há fim,
e, assim, fim sem fim ou infinito,
que escapa a
qualquer razão.
E isso implica, com efeito, contradição.
Por isso, quando
afirmo um fim infinito,
admito que a treva é luz,
a ignorância ciência,
o
impossível necessário.
E, porque admitimos um fim do finito,
admitimos
necessariamente o infinito,
o fim último ou o fim sem fim.
Não podemos, porém,
deixar de admitir o infinito.
Admitimos, pois, a coincidência dos
contraditórios, para lá da qual está o infinito.
Essa coincidência,
todavia, é a contradição sem contradição,
assim como o fim sem fim.
E tu dizes-me,
Senhor, que assim como a alteridade na unidade é sem alteridade,
porque é
unidade,
assim também a contradição na infinidade é sem contradição,
porque é
infinidade.
A infinidade é a própria simplicidade de tudo o que se diz
e a
contradição não é sem a alteração.
Todavia, a alteridade na simplicidade é sem
alteração,
porque é a própria simplicidade.
Com efeito, tudo aquilo que se diz
da absoluta simplicidade coincide com ela,
porque aí o ter é ser,
a oposição
dos opostos é oposição sem oposição
assim como o fim do que é infinito é fim
sem fim.
Por isso, tu, Deus, és a
oposição dos opostos,
porque és infinito,
e,
porque és infinito,
é a própria
infinidade.
Por essa razão, nada é outro, diverso ou adverso em relação a ti.
Pois a infinidade não é compatível com a
alteridade,
porque, sendo infinidade,
nada há fora dela.
Na verdade, a
infinidade absoluta tudo inclui e tudo abraça.
Assim, se fosse infinidade e
houvesse algo fora dela,
não seria infinidade nem outra coisa qualquer.
Com
efeito, a infinidade não pode ser maior nem mais pequena.
Por isso, nada é fora
dela,
e, se não incluísse em si todo o ser,
a infinidade não seria infinidade.
Porque
se não houvesse infinidade, não haveria então fim,
nem outro, nem diverso,
os
quais não podem ser sem a alteridade dos fins e dos termos.
Retirado, pois, o infinito, nada permanece.
Por isso, a infinidade existe, ela complica em si todas as coisas
e nada pode
ser fora dela.
Portanto, também nada pode ser outro ou diferente em relação a
ela.
Daí que a infinidade seja assim tudo por não ser nada de tudo.
À infinidade nenhum nome
pode convir.
Com efeito, todo nome pode ter um contrário.
Mas à infinidade
inominável nada pode ser contrário.
Mas a infinidade não é também o todo a que
se opõe à parte,
nem pode ser parte;
além disso, a infinidade não é grande nem
pequena
nem o que quer que seja de tudo o que no céu ou na terra se possa
denominar.
A infinidade está acima de tudo isso.
A infinidade não é maior,
menor, ou igual a nada.
Mas, enquanto considero que a infinidade não é maior
nem menor
que qualquer coisa que se apresente,
digo que ela é medida de todas
as coisas,
não sendo maior nem menor.
E assim a concebo como igualdade de ser.
Tal
igualdade, porém, é infinidade,
e, assim, não é igualdade do modo pelo qual
à
igualdade se opõe ao desigual,
mas aqui,
a desigualdade é igualdade.
Com
efeito, a desigualdade na infinidade é sem desigualdade,
porque é infinidade.
E,
assim, a igualdade é infinidade na infinidade.
A igualdade infinita é
fim sem fim.
Daí que embora não seja maior nem menor,
nem por isso, todavia,
é
igualdade do modo pelo qual se capta a igualdade contraída,
mas é igualdade
infinita que não admite nem o mais nem o menos.
E, assim, não é mais igual a
alguma coisa que a outra,
mas é assim igual a uma por o ser a todas
e igual a
todas por o ser a nenhuma delas.
Na verdade, o infinito
não é contraível,
mas permanece absoluto.
Se fosse contraível a partir da
infinidade,
não seria infinito.
Não é, pois, contraível à igualdade das coisas
finitas,
embora não seja desigual em relação a nenhuma delas.
Pois como conviria
a desigualdade ao infinito, se lhe não convém o mais nem o menos?
Por essa
razão, o infinito não é maior, menor, ou desigual
em relação a qualquer coisa
que se apresente.
E também não é, por causa disso, igual ao finito,
porque está
acima de todo o finito,
ou seja, é por si próprio.
O infinito é, então,
absoluto e incontraível.
Ó quão excelso és,
Senhor, acima de tudo, e simultaneamente [quão] baixo (humilis),
porque estás em tudo.
Se a infinidade fosse contraível a
algo de denominável,
como é a linha, a superfície ou a espécie,
atrairia a si
aquilo a que fosse contraída.
Ora, implica contradição que o infinito seja
contraível,
porque não seria contraído, mas atrairia.
Com efeito, se disser que
o infinito é contraído à linha,
como quando digo que a linha é infinita,
então
a linha é atraída ao infinito.
Na verdade, a linha deixa de ser linha quando
não tem quantidade nem fim.
A linha infinita não é linha, mas é, na infinidade,
infinidade.
E assim como nada pode ser acrescentado ao infinito,
assim o
infinito não pode ser contraído a algo
de modo a ser diferente (aliud) do infinito.
A infinita bondade não é
bondade, mas infinidade.
A infinita quantidade não é quantidade, mas
infinidade.
E assim se passa em relação à tudo.
Tu és o grande Deus, cuja
grandeza não tem fim.
E, assim, vejo que és a medida não mensurável de tudo,
como és o fim infinito de tudo.
Por isso, Senhor,
porque és infinito,
és sem
princípio nem fim,
és o princípio sem princípio e o fim sem princípio;
és,
assim, princípio por seres fim
e fim por seres princípio,
e não és nem
princípio nem fim,
mas, acima do princípio e do fim,
és a própria infinidade
absoluta sempre bendita.
Nicolau de Cusa – De visione Dei
Trad. João Maria André.
Cap XIII